A dissolução da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do século XX. Essa dramática declaração foi atribuída a Vladimir Putin, atual presidente russo e ex-oficial do KGB, o antigo serviço secreto soviético. Não é por acaso que ele tem trabalhado energicamente para recuperar a influência, prestígio e poder da Rússia, sucessora do antigo Estado Soviético. Para quem sempre esteve habituado com o poder e o exercício da autoridade, não deve ter sido fácil assistir bem de perto a implosão soviética. Suas ações enérgicas no campo político internacional, com mão de ferro, notadamente em regiões que fizeram parte do antigo Estado Soviético, seja sufocando movimentos internos separatistas, sobretudo no Cáucaso, como também fornecendo apoio militar a movimentos separatistas no leste da Ucrânia, que ao contrário querem se unir a Federação Russa, revela claramente sua tendência de resgatar para o país parte da antiga influência e poder que detinha a Rússia durante a era Soviética. Suas ações também podem ser consideradas um movimento de reação e defesa frente ao risco de cerco político, cultural, econômico e militar ocidental, que tem se manifestado pelo avanço da OTAN para o Leste, na medida em que absorve na organização países do antigo bloco militar comunista: O extinto Pacto de Varsóvia, do qual fazia parte a antiga União Soviética. O avanço Ocidental também tem absorvido na União Europeia países que anteriormente se encontravam na esfera de influência econômica soviética. Estes países da Europa Oriental, em especial, sentiram bem de perto o peso totalitário e repressivo das ditaduras comunistas a que foram submetidos, e não desperdiçaram a oportunidade em adotar regimes democráticos e a economia de mercado, e claro, se afastar da Rússia tão logo o Estado Soviético se desintegrou.
O atual sistema de governo russo, considerando-se sua organização política, é por definição de natureza democrática, já que conta com um sistema Legislativo e Judiciário, teoricamente independentes. Na prática trata-se de um sistema autoritário em que Putin, chefe do poder Executivo, tem amplo controle sobre as instituições. O estilo de governar russo que tem como referência um forte poder central lhe permitiu formar uma rede de relações internas que assegura ao presidente o controle político do Estado, exercendo forte influência sobre as decisões dos demais poderes em assuntos de seu interesse direto. Apesar disso, o índice de aprovação de Putin tem alcançado níveis elevados, em torno de 86% em fevereiro deste ano, segundo o Centro Levada que realiza pesquisa de opinião pública na Rússia, o que tem lhe permitido ampla facilidade de condução de sua política interna e externa.
O povo russo, chocado com a dissolução da União Soviética em 1991, e pelo estado de caos político, econômico e social decorrente da abrupta dissolução do país, agradece a Putin pela reorganização do Estado, pela recuperação da autoridade dos governantes e imposição da lei e da ordem frente às diversas organizações criminosas que se aproveitaram do momento de caos para enriquecerem ilicitamente. A experiência do povo com a democracia é muito recente e deve levar muitos anos para que as instituições estejam plenamente desenvolvidas para defender os interesses da população. Os russos sempre foram habituados a um estado forte, centralizador e provedor, por isso boa parte da população assistiu com simpatia Putin recuperar o prestígio do país. Sentiram-se fortalecidos com a recuperação do poderio militar, da economia, do salário e nível de emprego a despeito dos inúmeros e gravíssimos casos de corrupção que assolam o país.
A concentração de poder tem permitido a Putin exercer uma pressão desproporcional sobre os opositores políticos. Com isso ele tem garantido à colaboração de que necessita, seja por bem, daqueles interessados em ficar próximos ao “czar”, ou ainda, pela intimidação, para aqueles que decidirem não colaborar. Putin estatizou parte das empresas que atuam no setor de energia, colocando-as sob o comando de pessoas de sua confiança. O caso mais relevante foi a estatização da empresa Yukos em dezembro 2004, que atuava na área de exploração, distribuição e refino de petróleo. As estatais de petróleo, gás, ferrovias e comunicações foram colocadas sob o comando de pessoas de sua confiança garantindo o controle de setores altamente estratégicos da economia russa. Ele também é reconhecido por ter controlado a poderosa Oligarquia que se formou após o fim do período soviético, composta principalmente por burocratas e antigos membros do partido comunista que se apoderaram das principais riquezas do país logo que a União Soviética se desintegrou. Putin restringiu a influência destes oligarcas nos negócios do Estado e garantiu o espaço necessário para conservar seu poder e afastar opositores e desafetos políticos. A retomada da Yukos, o processo e a prisão de Mikhail Khodorkovsky, antigo dono da empresa, também serviu de exemplo para quem ousasse desafiá-lo. Uma boa amostra do que é o Estado russo pode ser visto no livro de Karen Dawisha, intitulado Putin’s Kleptocracy: Who Owns Russia?
Seu discurso nacionalista de defensor dos povos de idioma e cultura russa que habitam regiões próximas ao país tem despertado forte preocupação de seus vizinhos europeus, notadamente na Ucrânia, Bielorrússia, Moldova e Países Bálticos. Estes países abrigam elevados contingentes populacionais de origem russa que se fixaram na região durante o período soviético. Eles podem ser estimulados a buscar autonomia política ou se juntarem a Federação Russa o que provocaria a desestabilização política destes países. A recuperação da Criméia pela força é o mais recente exemplo dessa atitude nacionalista. Aproveitando-se da enorme presença de unidades militares sediados em bases da península, principalmente em Sebastopol, Putin não teve a menor dificuldade em controlar a região e obrigar a retirada das tropas ucranianas. A operação durou menos de dois meses e em Março de 2014 toda região estava sob o seu controle. A maioria da população da Criméia é de origem russa e apoiou a operação militar. Alegando laços sentimentais, históricos e de identidade nacional, Putin não perdeu tempo e anexou à península a Federação Russa, apesar dos protestos dos EUA e da maioria dos países Europeus, apreensivos com a justificativa de conteúdo nacionalista que poderia servir de pretexto para novas e ousadas aventuras militares, não só para redesenhar o mapa da Europa, mas também para submeter pelo medo os países vizinhos que tem fronteira comum com a Rússia.
Novas operações militares não tardaram a acontecer. Ainda em 2014, logo após a crise da Criméia, insatisfeitos com a decisão do governo ucraniano de prosseguir com seu plano de aproximação econômica e política com a União Europeia, separatistas russos iniciaram um movimento militar nas regiões industriais do Donetsk e Lugansk no leste da Ucrânia com o objetivo de se separar do país. Desde o início do movimento Putin tem enviado suprimentos militares aos rebeldes. Oficialmente ele não admite isso, mas seu suporte aos separatistas com soldados e armas é incontestável. Sem este apoio eles jamais teriam conseguido deter e derrotar o exército ucraniano em várias frentes de luta e forçar o governo, debilitado financeiramente, a uma trégua e se dispor a negociações de paz.
Putin tem a estratégia e as táticas claramente definidas para expandir sua influência, e assim, prosseguir absorvendo territórios que já estiveram sob o domínio soviético e que seja habitado por povos que falam russo. Enquanto isso, as potências ocidentais receosas de confrontá-lo em suas antigas áreas de influência se abstém de fornecer suporte militar aos ucranianos e aceitam a contragosto o avanço militar de Putin. A aplicação de sanções comerciais tem causado significativo impacto na economia russa, mas não são suficientes para causar problemas instransponíveis ao país, e de certo modo tem servido de estímulo ao povo russo para reforçar seu comportamento conservador e antiocidental e também para estimular a economia do país a se desenvolver em áreas onde não estavam suficientemente preparados.
O encontro de Merkel, Hollande e Poroshenko com Putin em Minsk, em fevereiro deste ano, para buscar uma trégua entre os separatistas e os ucranianos, e assim abrir negociações para por um fim ao conflito, tem servido apenas para um momento de pausa para que Putin, através dos separatistas, consolide suas conquistas militares. Será um verdadeiro milagre se Poroshenko alcançar um acordo que conceda autonomia as regiões para mantê-las no país. O conflito já foi longe demais. As partes se detestam e o conflito apenas reforçou a determinação das populações rebeladas em seu propósito de se separar da Ucrânia.
O encontro de Minsk traz a memória um evento de triste lembrança ocorrido em setembro de 1938 em Munique. A cidade alemã foi sede de uma conferência internacional com a presença dos líderes das Potências Ocidentais, representadas pelos primeiros-ministros da Grã-Bretanha e da França, Neville Chamberlain e Edouard Daladier, respectivamente. De outro lado, representando a Alemanha e a Itália, os ditadores Adolf Hitler e Benito Mussolini, respectivamente. No acordo, a região dos Sudetos Checos, na época habitada por povos de origem alemã foi cedida à Alemanha Nazista em troca de que isso fosse a última reivindicação territorial de Hitler. Antes do final do mesmo ano, Hitler ao invés de cumprir o acordo, tomaria toda a Tchecoslováquia. A política de apaziguamento se revelou um desastre completo para conter o ditador nazista, e tem servido de exemplo histórico quanto aos enormes riscos em ceder a pressões de líderes autoritários que deveriam ser contidos logo no início de seu processo de expansão, antes que se tornem mais perigosos e difíceis de serem detidos.
Putin tem a vantagem de ser um líder autoritário com muito mais poder interno do que qualquer chefe de estado ocidental. Já contando com a reeleição em 2018, ele deverá ficar no poder até 2024. Muito mais tempo do que qualquer líder europeu ou americano. Ao contrário dos estadistas europeus que dependem de negociações políticas internas para tomar decisões externas, Putin toma suas decisões com muito mais facilidade com praticamente nenhuma oposição significativa interna. Além de se mostrar um ótimo estrategista que sabe o que quer, ele tem como oponentes lideranças de países relutantes, que dependem uns dos outros para tomar pequenas decisões. Lideranças que estão muito preocupadas com seus próprios assuntos políticos e econômicos internos, propensas à negociação e a postergação de problemas difíceis de resolver, e que hesitam em se envolver em escaladas e conflitos militares.
Uma vez resolvido à questão ucraniana, provavelmente o próximo passo de Putin será articular algum tipo de pressão nos países bálticos, mais exatamente na Letônia, Estônia e Lituânia. Estes países, principalmente os dois primeiros, contam com grandes contingentes populacionais de idioma russo. Todos já fizeram parte da antiga União Soviética e se encontram estrategicamente situados às margens do Mar Báltico. Se a economia russa estiver estabilizada é bem provável que ele tentará interferir nestes países. Seja por meio da subversão e do suporte a movimentos separatistas, ou ainda através de pressões políticas para que seja concedida autonomia para estas populações, sob o pretexto de que elas não são bem tratadas e que não estão plenamente integradas ao sistema político e social local. Se conseguir desestabilizar estes países e conquistar algum tipo de concessão territorial ou política, ele terá conseguido alcançar seu principal objetivo, que é o de enfraquecer a aliança ocidental, conter seu avanço para o leste e mostrar para os antigos países que faziam parte do bloco soviético que a OTAN não pode garantir-lhes segurança, e que eles não deveriam ter se associado ao bloco econômico ocidental e virado as costas a Rússia. Neste ponto ele terá conseguido desmoralizar as potências ocidentais e abalar a confiança dos europeus na aliança atlântica com consequências políticas e econômicas imprevisíveis.
Putin sabe que qualquer movimento mal calculado em países que fazem parte da OTAN pode conduzir ao sério risco de confronto militar, com envolvimento direto dos EUA que também fazem parte da organização. Provavelmente este será o ponto limite em que os europeus e americanos terão que ser firmes e enfrentar Putin com o rigor necessário, ou se conformar com uma posição de absoluta inferioridade frente à Rússia na Europa. As peças estão no tabuleiro de xadrez. O jogo já começou e por enquanto Putin está com a vantagem.
Raimundo Oliveira
Cientista Social